quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Acidente no Comboio do Tua

.
Accident at the Tua Line
The Portuguese rail company - CP - is maintaining the line and ensure passengers safety?
.
O que a CP não vê
Faz hoje dois meses que, por milagre, a minha mulher e eu não perdemos a vida no acidente ferroviário, ocorrido na Linha do Tua, às 10h35’ da manhã do dia 22 de Agosto de 2008.
Penso nos meus filhos e fico angustiado só de pensar no futuro incerto deles, trabalhando em regimes de contrato a prazo e de recibos verdes, sem o sustento dos pais. Ficaram abalados com a notícia do acidente e que a mãe, em estado grave, tinha sido levada de urgência para o hospital de Vila Real. Sofrem com a dor dos pais. Ainda hoje recusam ver imagens que apenas eu vejo, como que para exorcizar o espectro da morte.

No momento em que o comboio descarrilou eu estava em pé, agarrado ao varão junto à porta de entrada da frente, a tirar fotografias à paisagem. A automotora, na recta da Brunheda, sem ter parado na estação, seguia em velocidade de cruzeiro, em direcção ao Douro, quando começou “aos saltinhos”, se inclinou para o lado esquerdo, contrário ao da ravina do rio, perdeu equilíbrio e, em poucos segundos, tombou para uma pequena inclinação de terreno ali existente, arrastando-se ainda mais um pouco, até parar, ficando imobilizada num muro de socalco e no declive de uma vala de escoar a água das enxurradas, por baixo da via-férrea.

Imediatamente a seguir ao embate ouvi gritos e vozes a procurar por familiares. Ao meu lado, um passageiro começou a partir os vidros da frente para podermos escapar. Agarrado ao varão, não fui projectado para o tecto da automotora como outros. O meu amigo foi a primeira pessoa a quem ajudei a levantar-se. Quando o vi caído no chão pensei o pior. Ele, a mulher e a filha tinham chegado de Lisboa, na véspera, a Vilas Boas. Era nossa intenção, depois da viagem de comboio ao Tua, visitarmos os lugares que a telenovela A Outra tornou conhecidos dos portugueses.

Refeito do susto, fui procurar a minha mulher. Ela viajava sentada, mais atrás; vinha, feliz, à conversa com a mulher do meu amigo. Chamei -a mas não me ouviu. Encontrei-a do lado de fora, junto ao muro de socalco, sem poder andar, testa e boca ensanguentadas, e osso frontal descarnado, à vista. Desviei o olhar e contive a emoção. Ajudado por um turista inglês e outro passageiro, levei-a para cima, até à via-férrea, por onde caminhamos alguns metros, até ficarmos afastados do comboio, em segurança. Diziam que havia perigo de explosão.


Ficamos na berma da via, ela deitada, com a cabeça apoiada no meu colo, à espera de socorro. Para estancar a sangria, uma senhora atou-lhe na cabeça uma cortina tirada da janela do comboio e a passageira inglesa deu-me uma garrafa de água para lhe lavar os lábios ensanguentados.










A assistência tardou a chegar.
Entre o acidente, ocorrido às 10h35’ e a chegada da equipa que a socorreu, às 11h38’, passaram-se 63 minutos; uma eternidade naquelas circunstâncias, que poderia ter sido fatal.

A demora na prestação de auxílio aos sinistrados deve-se fundamentalmente ao facto de os telemóveis, sem rede ao longo do vale, terem tardado a ligar para o 112.
O próprio maquinista teve de ir a pé até à estação da Brunheda, distante 1 km, pedir por socorro porque o comboio não estava equipado com meios técnicos de comunicação que, era suposto ter, no século XXI, um comboio a circular numa via-férrea onde recentemente tinham ocorrido três acidentes e provocado três mortos.



Como os técnicos do INEM não me deixaram seguir na ambulância, eu e outros passageiros que não ficaram feridos, fiquei na estação da Brunheda à espera que nos viessem retirar dali. O INEM deu-nos água e mediu-nos a tensão. A CP não deu a cara. Apareceu um presidente de câmara a prometer transporte em duas carrinhas de nove lugares mas até à hora de me vir embora, perto das 14 horas, não vi nenhuma.

Foi uma senhora, moradora numa casa junto à estação que, vendo a minha ansiedade, pediu ao filho para me levar ao Centro de Saúde da Carrazeda de Ansiães. Fui eu e o meu amigo. Ele ainda não sabia que a mulher tinha sido levada para o hospital de Mirandela.
Só no Centro de Saúde é que consegui ter rede e foi, lavado em lágrimas e soluços, como nunca imaginei, que dei a notícia à minha cunhada, médica, e à minha filha, ambas em Lisboa. No centro de saúde cobraram-me cinquenta cêntimos para chamar um táxi que me levasse à estação da Ribeirinha, onde havia ficado o carro, antes de inicio da viagem de comboio.
Acompanhei o meu amigo à urgência do hospital de Mirandela e depois segui pelo IP4 até ao hospital de Vila Real, debaixo de grande tensão. Pelo caminho, a minha cunhada ligou-me, acalmando-me, dando-me conta do estado de saúde da minha mulher e dos contactos que tinha tido com equipa médica que estava a tratar dela.
Alguns minutos depois de a ter reencontrado viva, num corredor do hospital, deitada numa maca, um médico enviado pela CP, aproximando-se de mim, perguntou-me se eu era o tal passageiro que nas declarações aos mass media, tinha dito pertencer ao Movimento Cívico pela Linha do Tua e que a direcção da CP devia ser julgada em tribunal pelos acidentes ocorridos. Indignado com a pergunta, confirmei ser o próprio. Sobranceiro, respondeu-me secamente que “-Era só para ter a certeza!”.
Dia 15 de Outubro, no centro médico da CP, em Lisboa, onde a minha mulher está a fazer fisioterapia e a ser acompanhada por uma psiquiatra e uma psicóloga, esse mesmo médico representante da CP, no estilo de quem não gosta de ouvir o que não está à espera que lhe respondam, ferindo o meu ego, deu-me ordem para sair do gabinete dele, como quem enxuta um cão, alegando impossibilidade de diálogo entre nós.


"-Olho para o espelho e vejo o meu olho deslocado" Conversa telefónica com amiga, em 26-09-2008
Nas duas ou três vezes em que falámos ao telefone, chocou-me a sua sobranceria. Cada vez que, à boca cheia, me dizia que “A CP paga tudo!” e eu lhe manifestava a minha discordância e indignação, ele, exaltado, punha ponto final à conversa.




No dia do acidente, a minha mulher depois de ser vista no hospital de Vila Real, foi enviada numa ambulância para o hospital de Chaves, onde lhe deram alta. Deitada numa maca, sem poder andar, a pretexto, não sei de quê, foi enfiada por dois bombeiros no banco do nosso automóvel, para eu a conduzir até à aldeia, distante 25 km, e lá sujeitar-se ao esforço de subir os degraus da escada da casa.
No dia seguinte, porém, os noticiários minimizavam o acidente “-Já regressaram a casa os feridos internados …”.



Ninguém nos telefona a perguntar como estamos de saúde. O gabinete de Relações Públicas da CP só entrou em contacto comigo uma vez, quando a pressão dos meios de comunicação social era mais forte. Recebi cartas dos hospitais de Vila Real e de Chaves a pedir o pagamento das taxas moderadoras e o nome da companhia de seguros mas a CP, através do seu representante, mandou-me devolve-las, alegando que isso era da responsabilidade do metro de Mirandela.


A minha vida mudou muito depois do acidente ferroviário. Estava reformado de professor havia pouco tempo. Tinha ido de férias para a aldeia descansar de um ano lectivo desgastante; tencionava ler no escano da cozinha a biografia do rei Dom Carlos e, longe da turbulência do liceu por causa da divisão dos professores em titulares e tarefeiros, tinha planeado passear por Trás-os-Montes, Galiza, Astúrias, País Basco e Vale de la Loire. Após o acidente tive que dizer adeus às coquilles de Saint Jacques nas Rias Baixas, às minas de carvão do Bierzo ...

Com a mulher deitada no escano passei eu, alem de motorista e enfermeiro, a ser doméstico a tempo inteiro. A primeira coisa que aprendi foi aperceber-me da necessidade de o ser humano, tal como os animais, procurar alimento para sobreviver. Passei a olhar o acto de comer não apenas como um acto de cultura em que, sentados à mesa, estabelecemos relações inter-pessoais. Aprendi que se tira a pele aos pimentos assados …



Cumprindo as instruções que ia recebendo lá me fui safando, entre suspiros e dores nos rins. Também cheguei à conclusão que não tenho muito jeito para cozinhar, faço tudo muito aldrabado, mesmo quando, com gosto, me predisponho a fazer doce de abóbora cultivada por mim. Há coisas simples de fazer mas mesmo nessas é preciso dominar a arte de as fazer bem. Quem diria, por exemplo, que as camisas devem ser estendidas com o colarinho virado para baixo? Fiz de tudo, só não passei a ferro graças à ajuda pontual de alguma vizinha, amiga e filha que nos foram visitar. Contratar uma mulher-a-dias foi algo que a CP não admitiu que fizesse.


"-Tenho pena do que vou deixar de fazer" Ao telefone com a amiga Fernanda em 26-09-2008
A CP não vê as sequelas deixadas nos sinistrados - marcas físicas, incapacidades intelectuais, insónias, fobias, stress ... , nem vê o estado do caminho de ferro da Linha do Tua.




É acusada de incúria nos meios de comunicação social mas ninguém é responsabilizado.








Os resultados de inquéritos aos anteriores acidentes não são publicados. Dois meses depois do acidente de 22 de Agosto, ainda não foram divulgadas as causas. Que foi feito à "caixa negra" do comboio? Porque se omite a que velocidade seguia?
É preciso ser técnico altamente qualificado para diagnosticar o estado da linha do comboio no local do acidente?

Quem acredita na história do hipotético abatimento de terras em tempo seco e em vistorias que se diz serem feitas diariamente?
Todos os que defendemos a preservação da Linha do Tua, devemos estar muito atentos.
Brunheda, voltada para o vale do Rio Tua

sábado, 4 de outubro de 2008

Vindima no Douro

O Outono chegou. É tempo das colheitas.
Começa o ciclo da colheita das uvas e do fabrico do vinho.
Vitral na Casa do Douro, na Régua, dedicado às vindimas.
“A vindima no Douro é a festa de toda uma região, a "eucaristia" de um povo que labuta um ano inteiro, de sol a sol, para ver dar-se o mistério da transformação do suor, sangue e lágrimas de homens e mulheres, em vinho fino.”
No final de Setembro, para conhecer o Douro das vindimas, parti da Montanha, onde não há vinhas nem olivais, à demanda dos vinhedos de sonho, salpicados de parras levemente amareladas e acastanhadas.
Ia a caminho da estação da Brunheda, por uma estrada serpenteada e cercada de vinhas de socalcos, experimentando sensações de nostalgia, quando, na aldeia da Sobreira, concelho de Murça, próximo da ponte sobre o rio Tua, avistei um tractor a movimentar-se no alto de uma vinha.
Pensando que ali deviam andar a vindimar, parei o carro à beira da estrada e subi pela vinha acima, até que um dos dois jovens irmãos proprietários da quinta veio ao meu encontro perguntar-me o que procurava. Feito o esclarecimento pôs-me à vontade para fotografar a vindima.
No final, sob pena de ser descortês, não pude recusar beber o copo de vinho oferecido pelo senhor do planalto mirandês. Obrigado a todos, obrigado Gorete, bonito nome que me faz recordar a ladaínha que ouvia em criança, na igreja da aldeia onde nasci.
.
A viticultura é uma activadade importante no Douro. Miguel Torga, escritor de Sabrosa, na sua obra Vindima, escrita em 1945, denuncia a exploração do vindimador e descreve a tradição de vindimar: “Em Setembro os homens deixam as eiras da Terra Fria e descem, em rogas, a escadaria do lagar de xisto. Cantam, dançam e trabalham. Depois sobem. E daí a pouco há sol engarrafado a embebedar os quatro cantos do Mundo".
.
Nesta quinta da Sobreda, e noutras da Região Demarcada do Douro, não há rogas - ranchos de homens, de mulheres e de crianças que outrora trabalhavam e animavam a faina das vindimas e lagaradas com seus cantares, bombos, ferrinhos, braguesas e concertinas.

O trabalho é feito por familiares, amigos, vindimadores contratados por empreiteiros agrícolas e, em quintas transformadas em empresas turísticas, por turistas em busca de um mundo telúrico, onde o homem se funde com a natureza.

Anos mais tarde, no prefácio à tradução inglesa de Vindima, Miguel Torga escreveu – “… Cingido à realidade humana do momento, romanceei um Doiro atribulado, de classes, injustiças, suor e miséria. E esse Doiro, felizmente está a mudar. Não tanto como o querem fazer acreditar certas más consciências, mas, enfim, em muitos aspectos, é sensivelmente diferente do que descrevi..."


"...Desapareceram os patrões tirânicos, as cardenhas degradantes, os salários de fome. As rogas descem da Montanha de camioneta, a alimentação melhorou, o trabalho é menos duro. Também o rio já não tem cachões, afogados em albufeiras de calmaria.” - Miguel Torga
Longe vai o tempo em que os homens, caminhando em fila indiana pelos socalcos, usavam cestos de verga para transportar as uvas para as dornas, colocadas em cima dos carros de bois.


Antes, o povo dizia que “até ao lavar dos cestos é vindima”.


E agora que os tempos são outros – as uvas são transportadas em tractores até às camionetas de carga - será vindima até ao lavar dos baldes de plástico?
A vindima, tal como diz o provérbio, é até ao lavar dos cestos, e isso inclui levá-las até aos lagares e adegas para fazer o vinho. Nas estradas da região demarcada, transformadas em artérias vitais da produção vinhateira, a correria de camionetas, saídas das diversas quintas, é incessante.

A tradição já não é o que era.
As uvas, transportadas em contentores metálicos, são despejadas em lagares mecanizados ...

... onde os bagos são esmagados, prensados e separados do engaço e da graínha.

A inovação tecnológica pôs fim às lagaradas - pisa tradicional das uvas, prática rodeada de um ambiente de festa que proporcionava a convivialidade e o reforço de laços identitários entre os participantes.
O mosto fermentado é encubado em modernas cubas cilíndricas de alumínio até ser transformado em néctar de vinho perfumado.
Pelo método tradicional, o mosto é colocado em toneis e pipas onde fica, enquanto estiver cru, até ao São Martinho, altura em que se dá a prova do vinho novo.

Fim do ciclo produtivoNo passado, o tempo das vindimas era uma época quase sagrada, pois a receita da produção, numa região de quase monocultura, era a principal fonte de rendimento para o resto do ano. Os pequenos proprietários, sempre na incerteza da colheita que iriam ter, faziam contas à vida, enquanto rendeiros e caseiros ficavam na expectativa da terça parte que lhes poderia caber.

No painel central do tríptico de vitrais da Casa do Douro, a viticultura (dezenas de milhar de produtores) e o comércio de vinho do Douro (casas exportadoras controladas por capital estrangeiro) apertam as mãos, num acordo de cavalheiros, sob o olhar da Casa do Douro, instituição de viticultores criada pelo Estado em 1932. Porém, as relações entre produção, comercialização e Estado, nem sempre pacíficas, marcam ainda hoje, para o bem e para o mal, os destinos da Região Demarcada.
Clicar AQUI para ler a interpretação de todo o vitral e ficar a conhecer a deliciosa lenda do Conde de Guillon e de Santa Marta, padroeira do Douro.
Perspectivas novas perfiladas no horizonte
A parte inferior da vinha pertencente à Região Demarcada do Douro, o olival, a estrada, a Linha do Tua e a ponte da Brunheda ficarão submersos se a planeada barragem na foz do rio Tua for construída. Quem ganha? Quem fica a perder? Que interesses estão em jogo? Que valores mais altos falarão se a barragem for construída ou se a linha do comboio permanecer em funcionamento?

Confiança
O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura
Que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova...
Miguel Torga

Os vitrais da Casa do Douro, obra do Pintor Lino António, terminada em 1945, homenageiam a região duriense.